Tenho tanta saudade de mim...

segunda-feira, agosto 29, 2022

(sem título)

 a tua boca é labirinto
há vias
recôncavos
recintos
que meus lábios insistem
querer

domingo no parque

para Lu e Mau.

três vidas domingo à tarde rumo a Pinheiros
três histórias
três
sobem a rua em marcha lenta
respeitando os 40km por hora
três passados inexistentes
moldados pelos olhos d'agora
 
três espectros de vida
disputam o mesmo oxigênio
mas exalam entre si aromas
próprios únicos solitários
como o pensamento
(ou o tráfego lento)
não sei se ali poluem mais a atmosfera
da cinza essepê
ou se dissipam pelo ar medos
inauditos
e que apenas se atrevem
nos suspiros
 
paro
fito lá fora
há três outros garotos descendo a rua
                                                  agora
passos desinteressados
tons monocromáticos
risos flácidos...
 
gosto de imaginar
que somos muitos trios
permeados de sumiços
seguindo diversos traços
num domingo
 
São Paulo-SP, 14/09/22

vamos tomar um cappuccino?

Para Mau, Lu, Rô e Du. 

Antes de mais nada, quem ler esse relato daqui a alguns anos é importante frisar, ressaltar, sublinhar, enfatizar que o Brasil de 2022 estava um caos.  Não que antes não estivera ou que de repente ainda não esteja, mas naquele ano foram descortinadas as piores faces da miséria humana. Um mundo pós-pandêmico? Pós apocalíptico? Defina como quiser. Aqui, alguns dados: trinta por cento da população brasileira em estado de insegurança alimentar. Tem noção do que é isso? Pessoas que talvez tenham uma ou duas refeições ao dia, mas com total incerteza de conseguir se alimentar nos próximos dias, nas próximas horas. Trinta por cento! O que causa mais choque é que o Brasil sempre fora o país com maiores recordes mundiais na produção de alimentos. Há quem diga que se perca muito desses produtos. Comida no lixo. Gente com fome. Quer mais? Cidade de São Paulo, maior centro econômico da América Latina, um recorte de Brasil gentrificado, cento e vinte mil pessoas morando nas ruas. Você leu corretamente. Imagina que cerca de 5.220 municípios brasileiros têm menos gente do que esse quantitativo e olha que o país nem chega a ter 6.000 cidades. Coroando esse cenário sombrio, estamos prestes às eleições presidenciais. Sombrio porque a experiência das eleições de 2018 foram no mínimo revoltantes. Fake News, deep/dark web, alusão à ditadura militar, crianças querendo voltar pra Disney revoltadas com o dólar a 2,70 (mal sabendo como iria ficar ao final de 4 anos), enfim, deu no que deu. Estamos em setembro. O presidente atual tenta a reeleição e não sabemos o que esperar nas próximas semanas.

Voltemos a São Paulo. Bandinhas com marchinhas de carnaval cheias de sarcasmo desenham as ruas do centro da cidade. Não é fevereiro, vocês lembram, né? Mas é campanha eleitoral. O carrinho de som puxado por uma bicicleta e uns artistas com perna de pau no pelotão de frente da manifestação convidam os transeuntes a seguirem aquele protesto num domingo de temperatura amena. Olha que legal! Deve ser bloco de esquerda, todo mundo de vermelho. O pessoal da esquerda sabe fazer uma animação gostosa. Eles são inteligentes e perspicazes. A cerveja do vendedor que acompanhava aquele pessoal estava geladinha. Dez reais! O preço tá bom. Afinal, é protesto raiz. Da galera que ler Hegel, Nietzsche, Sartre ou mesmo o bom e velho Marx, usa camisa colorida, bolsa transpassada no peito e um tênis basiquinho com meias à mostra. O almoço seria ali perto, mas como era um restaurante bem disputado, novo na cidade, a fila de espera estava com previsão de uma hora no mínimo. Os nossos protagonistas desse relato, ao ver o bloquinho passando, nem pensaram duas vezes. Deixaram o nome lá no restaurante e se esbaldaram naquela alegria efusiva, carnavalesca e de cunho social pujante. Aquilo rendeu alguns stories, provocação nos grupos de família, do trabalho... Deboche inteligente com aqueles que ousavam proferir o voto para o candidato da reeleição.

Que alegria, o tempo passou rapidinho. Seguiram para o almoço quase três da tarde. A experiência do restaurante foi razoável. O cardápio cheio de brasilidades: castanha de sapucaia, moqueca de pintado, massas com cogumelos yanomamis, bolo de fubá, geleia de jabuticaba, chá com nibs de cacau, vinho orgânico produzido por mulheres. Enfim. Nada mais apropriado para aquele grupo engajado de consumidores conscientes, politicamente corretos e que discutiam tendências de decoração.

O domingo seguia largo. Fazia sol, mas, como disse, não passava dos 20 graus Celsius. Um convite para um passeio a pé entre amigos surgiu. Deixaram então o centro e comentaram revoltados sobre o preço do estacionamento naquelas bandas. O centro já não era o mesmo. Tinha estacionamento cobrando sessenta reais, acredita!? Vamos pra onde, meninos? Pronto, avenida Paulista. E rumaram para o novo destino. Pararam o carro por ali perto e caminharam com passos lassos até aquele cartão postal um dia inundado de patos de borracha e de gente empunhando cartazes com frases mais ou menos assim: mãe, deixei a cama desarrumada e saí pra arrumar o Brasil. Tente não rir. Você leu correto. Uma busca rápida no Google protestos Brasil 2018 vai te mostrar isso e muito mais. Foi drástico. O desfecho foi a cadeia de acontecimentos que culminou no que está relatado no primeiro parágrafo desse texto.

A rua estava cheia de gente, skates, bicicletas, pets, música, dança. Ainda bem que eles bloqueiam essa parte da cidade. É a praia do paulistano. Quem mora à beira do mar agora deve ter dado uma boa gargalhada. Eu dei. Mas cada um usa o que tem, né? Tem gente que sai do nordeste pra tirar foto no domingo naquele lugar com legendas do tipo domingo de sol especial. Vai entender. Mas os nossos amigos aqui não estavam muito afeitos a fotos àquela hora. O limite de stories já tinha sido atingido com a passagem da bandinha mais cedo. Seguiram caminhando bem desinteressados, rindo e lembrando da festa que foram na noite anterior. De longe, avistaram outro grupo de ativistas. Não tinha música, ao contrário, o tom de voz mais enérgico, quase vociferando num megafone chamou a atenção. A roupa do grupo não tinha uma cor definida, mas certamente era de esquerda aquele pessoal. Ouviam-se coisas como palavra de ordem, comida para todos, desigualdade social... E os amigos foram chegando mais perto para ouvir aquele discurso consciente e necessário. Viram a bandeira de um partido. Confirmaram, era uma galera de esquerda, mas uma esquerda mais esquerda, sabe?

Daí a pouco, sobe num palanque improvisado com caixotes um candidato a deputado estadual. As palavras dele logo de início causaram muita comoção, os ouvintes gritavam e o nossos amiguinhos ali no fundo do protesto também. Pela regência verbal e pela concordância gramatical empregadas, aquele orador provavelmente não tinha o substrato acadêmico dos grandes filósofos do socialismo. Ele falava mesmo de alma, como quem compartilhava do desespero daqueles trinta milhões de famintos ou dos milhares de desabrigados. De repente, ele começa a dizer que independente de quem ganhasse as eleições presidenciais aquele ano, quem estava fodido, ia continuar fodido, porque o regime democrático brasileiro nunca foi inclusivo com os pobres e exemplificou que, com a grana que a galera gasta pra financiar as eleições, pra ser político eleito no Brasil tem que ser muito rico. E gritou: o problema do Brasil é a burguesia! Abaixo a burguesia! E o grito de ordem ecoou entre os manifestantes, que pulavam e repetiam com ferocidade Abaixo a burguesia! Abaixo a burguesia!. Bem, os meninos continuavam lá no fundo, mas se entreolharam assim meio constrangidos, meio sem graça, até que um deles rompeu o silêncio com um convite: gente, vamos tomar um cappuccino? E atravessaram a rua.

segunda-feira, agosto 01, 2022

repente dos corações partidos

marcaram enfim a grande convenção
dos partidos corações
e os dos a ponto de morrer

o aviso chegou assim
a galope
como um susto, num toque
de mãos frias
em choque
dentro duma tarde
qualquer

tragam suas mágoas
seus futuros planos, suas cláusulas
suas verdades, seus clamores
usem o palco já!

o coração coberto de razão
tomou logo seu assento, lá na frente, bem audaz
vociferava seus atributos, suas belezas
e o grande absurdo
de quem lhe ousou o amor negar
pulsava cheio de sangue
(via-se o vermelho nos olhos)
era dele o palanque
nada, nem ninguém
podia também clamar

chegou em seguida o despedaçado
arrastado pelos braços
pingando seus estilhaços
no grande corredor a passar
não tinha voz, nem nada
não tinha paz
só mágoa
sentou-se no meio da sala
pôs-se por fim a chorar

veio depois o mal dormido
sonolento, tonto, contido
no bolso, um par de comprimidos
preta era a cor do talão
esse veio pensando de longe
dizer o que sente
mas, como monge,
cobriu-se de silêncio
engoliu a emoção

o desencantado: cansado,
sujo, velho e surrado
com manchas
de remendos costurados
olhou incrédulo
o espetáculo:
há séculos não via
tal festival de sensações
era uníssono o caos
daqueles corações reunidos
uns gemendo, outros, aos gritos
em meio ao grande salão

ele então achou vida
mesmo surgindo da ferida
que os motivaram a reunião
sentia-se sem palavras, sem gestos
e eis que lhe surge o afeto
em meio à grande confusão

o desencantado criou coragem
pisou forte, mas manco,
subindo ligeiro no banco
e gritou sua liberdade
correu e abraçou o que tinha razão
marcou-lhe com um beijo a fronte
e disse: obrigado, meu irmão!
catou depois uns pedaços
remendou o outro
(como em seus cacos)
com fita isolante de solidão
deu colo ao que não dormia
era calor que ele queria
para ter paz e adormecer

mas o que ganhou o desencantado?
havia ele apenas cuidado
doutras demandas então?
engana-se quem imagina
que essa seria sua sina

ao passo que recolhia
as mágoas, as covardias
os medos, as melancolias
a cegueira, os absurdos
dos outros corações
imprimiu em si o que lhe faltava
não razão
nem lamentos
abraços
ou mais fragmentos
nada disso não
voltou nele num rompante de alegria
ou desespero
(ainda não se sabia)
o sentir de novo
naquele dia
a mais pura
emoção
 
São Luís-MA, 30 de julho de 2022.

pessoas que amam demais

há espaços quase intocados
entre o prazer e a dor
no limite dos opostos
na nudez de todos os ais
os loucos ignoram
só os reconhecem mesmo
aqueles que amam demais

são hiatos preenchidos
de infinitos vazios
saudades que sequer supunha-se existir
um porto de barcos
que chegam e vão, uns trazem boniteza
outros não
um controverso cais
nele só aportam
aqueles que amam demais

as partidas, as despedidas
os mares, os rios, as águas da vida
é sobre o tempo que se esvai
se há passageiros ou se apenas ilusões viajam
não se ousa perguntar jamais
afinal é matéria de extinção
(ou se escondem na solidão)
aqueles que amam demais
 
Santo Amaro-MA, 25 de julho de 2022.

o surfista de pipas

para D.

o fio em riste quase fere a mão do surfista
ele iça vôos
desenha no horizonte ângulos diversos
com a lâmina da água de luminosidade claríssima,
claríssima
como uma caldeira fervente de prata derretida
ou o mercúrio estilhaçado dos termômetros antigos, sabe?

mas era água
e ondulava
e deslizava
e ia, ia, só ia
era água!

outros homens e outras mulheres com seus fios e pipas
e pranchas
levavam as certezas a punho,
a firmeza do mundo
como se a possuísse inteira.

toda a razão possível!
é importante ter razão: os mares se abrem assim.

espero que haja felicidade também nela
 
Atins, 24 de julho de 2022.



montanhismo

para D.

os mais íngremes picos:

teus mamilos

percorri
 
do subterrâneo orifício
galguei pilosos
folículos
com a língua morna
até subir
ao mais gozoso de ti
 
Chicago, IL, 28 de junho de 2022.

assentamentos legítimos

para D.
 
há luz todos os dias
cinza chuva ventania
insiste a valentia
dos que atravessam nuvens:
raios
teus olhos
pássaros…

há vida todos os dias
no canto do teu sorriso que miro
(daqui de cima)
no preâmbulo do teu beijo
seiva
suco
saliva
sumo do teus poros e orifícios
testo limites
e me ris
e me olhas
e me fulminas
e me povoas
meu latifúndio-corpo
teus assentamentos legítimos
cravando teu poço
na vara que te excita

São Paulo-SP, 28 de março de 2022.

(sem título)

para D.

às vezes te vigio de longe
só pra saber se estás bem
pergunto de ti a outros
e o sorriso me vem
se foi encantado
ou chispa do acaso
feitiço das matas na noite estrelada
confesso, nunca cri
o que sei
e sinto
é sim:
tenho saudades
saudades, mesmo perto de ti

São Luís-MA, 03 de maio de 2022.

sobre teu beijo

para D.

vamos deixar assim?
seguro a tua mão e toco nos meus teus lábios
e me sorris
o ângulo da tua boca
agudo
tímido
(talvez confuso)
um disparo
no escuro

mas deixemos assim

teus olhos de esquina
me espiam
de lado
intencionalmente
escandalosamente
desinteressados

deixa assim
o corpo que é meu encontra o teu
no espaço virtual
que nos fizeram crer: imoral

assim, deixa assim
eu te beijo e te pergunto depois
não por curiosidade
é que é vexatório o desejo de só te beijar
é pra justificar seguir te beijando após
pra sentir tua alma se esvaindo em saliva
e habitando em mim

deixa bem assim
na porta do paraíso
noite de chuviscos
no reflexo branco
teus dentes
se insinuam nesses lábios
que me perdi
e de onde, agora, grito
aflito
torcendo
que ninguém
me ouça
 
São Paulo-SP, 13 de março de 2022.


o homem-sem-alma

o homem sem alma segue o passo
calmo
vai sereno, cruza pedras sem tropeços
sobe ao cume mais alto
atravessa o ar entre os braços
e guarda o olhar que ninguém decifra
o homem-sem-alma vai desatento
não há frio
noite
ou relento
que desvie seu pisar
cheio de certezas

o homem oco d’alma é só calma
é manso, intrépido
desconhece o medo
nem o ódio
ou o bem
ele é claro como o orvalho
leve como o dente-de-leão:
o vento sopra
e ele ganha o infinito

o homem desprovido de alma não foi menino
nem velho será
passado e futuro não se convergem
presente é apenas o que há
se sente fome, nunca se soube
se chora, ninguém viu
padece apenas de uma enfermidade
a ele lhe falta
humanidade

quem conquisa um poema?

Declara-se posse dele
o poema
Cercam-no de paus
ripas, correntes
bancos de areia.
Ficam a espreita
deitados baixo a trincheira
Declaram guerra aos inimigos
Rotina
Estupidez
Cegueira
E fincam uma bandeira ao meio
Gritam ao universo
Que é de sua posse
O verso
Cultivam-lhe a terra
Revolvem os recessos
Rasga-lhe a pele duro ferro
puxado a cavalos
e a destino incerto
rabiscando em terrenos planos
sinuosas linhas
vincos
sem nexo
Depois
repousam lá sementes de tudo:
amor
ódio
silêncio
futuro?
E oram...
Recolhem-se em prece
Fazem danças estranhas a deuses
Ao oráculo eterno
Pedem chuvas
Rogam ao vento
E pois que enfim ele brota
selvagem
em terras insólitas
bem longe dali.

esperando você chegar

Houve noites que nunca acabaram
(elas ainda insistem ali)
flores não cultivadas
sala desarrumada
houve desespero, sim
 
Havia nuvens intransponíveis pelos raios
dos dias
 
Habitou um grande silêncio

Mas ela gritava
a vida
ela teimava em existir:
despertou o alarme às cinco e meia
pôs o tênis a correr
deu-se água, deu-se ar
revolveu o chão
e jogou as sementes.
Faxinou a sala, o quarto e até o tapete de poeiras antigas
Pintou a fachada e depositou um jarro de hortênsias azuis à porta.
Acima desse, pendurou o letreiro:
- "Toque a campainha!
Estamos abertos".
 
São Paulo-SP,  11 de março de 2022.

há momentos para poesia

Para Sônia Almeida.

não queremos você agora, ela dizia.

há excessos
queremos recursos
elementos de ligação
e contrapontos
um ensaio
uma redação

há exageros aqui
muito lirismo
pouco cinismo
não há no currículo
espaço pra tal
interpretação

mas calma, meu filho
(ela sorria)
um dia serás livre!
a essas vozes
dá-se outro nome:
poesia.

no tempo dos sonhos

para Davi Kopenawa Yanomami
 
na infância, nosso pensamento habita no esquecimento
nossos pais desenham nossa memória
só depois
num momento
que não se sabe
um sopro
um espanto
crescemos
e podemos lembrar que sonhamos
e que eles vivem em nós, o sonhos,
habitam em nós
tão profundamente
tão unicamente nossos
que, indissociáveis de nossas carnes, ossos e almas,
só os encontramos nas profundezas da noite
quando dormimos

Sobrevoando um Brasil incerto, 13 de maio de 2022.

(sem título)

não se engane, moço
não diga que o não posso
o tempo é raro
é escasso
o instante é belo!
 
teus olhos de esquinas
tuas mãos, destino incerto
vem! te interpreto
respiro teus pelos: perfume dos poros
moro
sob tua pele-teto

não me engane, moço
há esquinas onde te beijo nesses olhos?
há curvas que seguimos
nos vincos
da mão?

não?

então, corre menino
me deixa aqui
(pequeno)
sofrerei uns dias
amarei penitente
e a vida irá
inclemente
engolindo o que há
de ti.

 

menino do rio/Rio

escrevo poesias por ti, menino
a chuva é densa e o matagal lamacento
cresce nos becos
e esquinas e esgotos
mas é por ti, menino, que sigo
 
sim, tu aí que lês
com teus olhos incertos
meio cá, meio ali
 
pra ti
rio, menino que lido
com páginas de versos
inda-não-lidos
o poema nasce na distância de três horas
de turbinas
entre aqui e ali,
menino
 
a unidade de medida das lonjuras é o tempo
não a distância
por isso
por ti
menino
o minuto vale mais
que léguas de bicicletas
ou vôos de borboletas

fica assim, em mim, menino
deixa que eu mire esses olhos bêbados
de ternura
que me perca no abraço contido
e que faça longas pausas
e silêncios
à beira desse rio,
menino.

sobre os sonhos

os sonhos não se alocam no hiato das ações
eles são atitudes concretas
cotidianas
corriqueiras como o escovar de dentes
ou o tráfego pesado ao meio dia
 
eles permeiam os espaços
e desafiam as leis da física
 
indeléveis, eles não envelhecem
apenas se apuram
e
norteiam caminhos
ou simplesmente nublam
a crueza
dos dias.

São Paulo-SP, 12 de março de 2022.

a loucura e o maratonista

desciam a avenida
às pressas, esbaforidos
dois humanos:
à frente, de amarrados cabelos
loiros, óculos, tênis
enredo passo
uma maratonista
atrás, ele,
um louco desvairado

corredora e louco
a dois metros de espaço
ela corria com denodo
ele, com passos lassos
havia ali claramente dois compromissos
dela: corpo
     tempo
postura
dele, nada
(senão a loucura).

Sao Paulo, 11 de outubro de 2021.

abraços invisíveis

para os que habitam as ruas

na brutalidade humana
na crueza de rua
habitam seres vagos
humanos de estrutura
camuflam-se ao concreto
cimento de vida dura
amálgama da cidade moderna
fosso d’alma, arranhadura

na brutalidade humana
na crueza de rua,
pasmem!
dois seres vagos se abraçam
há afagos que insistem
desafiam dura rua
curam decerto algo
e duram.
 
São Paulo-SP, 11 de outubro de 2021.


grão de areia

grão
pingo de universo
gota de terra no oceano
um grão
monossílabo que preenche a boca
e demora pouco
na palma da mão
 
grão
gota de universo
pingo de terra
que se encerra
no chão
microscópica beleza
infinitas estrelas
contam mais de bilhão
chão
grão
mão
tocam-se na tarde
numa praia distante
num gesto terno
de afagar
o mundo
vão

(sem título)

é que acredito em todos os formatos de família
disse ele, meio menino.
 
sorri
 
e tive vontade de passar café
e de sentar a tarde inteira
sentindo o aroma
daquelas palavras
da bebida quente
da sua língua

os jardins que trago em mim

tem a cor das que tens em ti
folhas: ora verdes
ora carmim
visgos heras cupins
             por que há belezas
             sim
            (mesmo invadidas)
             nos meus
             confins.

kiss goobye

I may be distant
you may be not
I pause the instant
you silence’n’nod

and leave…

1.000 e tantos quilômetros

 pele da terra, grão
arranha tegumento mão
esquivo o olhar
debruçando teu ventre
à beira mar
me calas em vão
chão
bruto
duro
firmo meus dedos
impuros
tuas tetas tremem no atrito
dessa carne viril
gemes
gozas
e ris
atravessas quilômetros mil
e vens habitar
por segundos
em mim

Recife-PE, 03 de abril de 2022.

Haikai

Numa tarde trivial, passando ali no finzinho da Paulista (ou no começo), entrei na Casa das Flores. Gosto dali. Uma moça muito simpática me convidou para uma oficina de haikai (haiku, se preferirem). Meu espanto foi o mesmo da maioria de vocês, suponho. Nunca tinha ouvido falar no que raios era esse tal "haikai". Busquei no google pra não assumir a total ignorância e, como envolvia poesia, sentimentos, arte japonesa, topei. Há um rigor no haikai. É pra ser um terceto e há de ser observar três elementos: forma, corte e kigo (termo japonês para a estação do ano). Gostei da simplicidade do verso. É como se fosse um ikebana literário. Saí de lá um especialista em desaprender! Desconstruí e compus meus haikais abrasileirados (mas nem por isso menos líricos), como a seguir:

Haikai da finitude
A gota evapora-se
a medida do calor
e a vida não pode ser fria.
 
Haikai da juventude
Vês?
passou... 
 
Haikai da alegria
Naquele domingo
o sol brilhou sobre o mar
e eu vi.
 
Haikai dos dias longos
O relógio é escravo da felicidade
que o deixa correr
quando a encontra.
 
Haikai dos infortúnios
Ele queria ver estrelas
insistiu num passeio noturno
um tombo o levou aonde queria.
 
Haikai da amizade
Olharam-se por um segundo
e simplesmente
souberam.
 
Haikai para alcançar o Nirvana
A dor lhe causou felicidade,
deu-se conta afinal
de existir.
 
Haikai dos amores vãos
Perdoou-se.
 
Haikai do silêncio
(...) 

segunda-feira, junho 01, 2020

a brutalidade não merece título

nem branco
ou amarelo
vermelho (cubano)
é do humano
a pele que pesa
séculos e séculos
a mazela
fria
da economia
feudal

é preta!

nem branco
vemelho
cinza, espelho
embaçado?
metais
pesados
a cana, o  cano
da pistola
engasgado

vermelho, um tijolo
branco soldado
preto culpado
ecoa o refrão:
- Hey, people, leave those kids alone!
Pink ou George
flores ou Floyds
mortos
no chão

quinta-feira, maio 14, 2020

five o'clock

sob criteriosas mãos, os elementos
alquímicos, farináceos sentimentos
umedecem espessos
como a grossa nuvem
que embaça
a paisagem.

ali, homens, mulheres, os pequenos
todos são sedentos e silêncio.
a espreitar pelas frestas da vida
repousam o olhar primeiro
como o encontro do inverossímil.
narinas atentas, percebem?
ela agora nos força a felicidade
com notas de laranja e canela
e não há quem resista
atravessa involuntário a goela
chega no interstício
da alma do poeta.

salvemos o mundo
revolucionemos a Terra
como aqueles dedos cautos
generosos, sem dolo
amaciemos a vida
e assemos, à tarde, bolo

o menino e o mar

há de se emergir
ir ao alto
tomar longo hausto
destravar o claustro
o cinza
banir

há de se fugir
despir-se de qualquer manto
desembaçar o vidro
do escafandro
as pupilas
de todo ser.

há de se calar
ouvir o canto
(ondas de hipocampo)
menino casto
qu’inda mora
nas revôltas
brumas
do (a)mar

o assassinato natalino

primeiro, davam-lhe a aguardente
hauria-a devotado
tombava pois no terreiro
morria decapitado
ferviam água em caldeiras
ateavam-na o corpo flácido
arrancavam-lhe do couro tudo
ardia no forno, tostado
o sangue, reservaram antes
(quiçá engrossar um caldo)
olhos assassinos à espreita
daquele dado em sacrifício
de mau grado
depois, viva!
começa a festa cristã:
sua estrela maior morre bêbada
de véspera
e pagã

lira singela, Lia

à ciranda da vida que tornou nosso encontro possível.
à Lia.

seus olhos de um século
me sorriem meninos!
digo “a mim” num clamor narcísico
pois ela ri ao mundo igual

é que me toca a alma
com a calma duma brisa
e a fúria dum vendaval

e me tira os pés do chão
(ainda há chão?)
nada mais me prende,
sou liberto
encontro lá: paulos, teresas, gilbertos
e numa ciranda bonita
de cantigas puras
e duras,
nascida da dor
do belo
giramos, giramos, giramos...

entre lágrimas, a alegria
florescida nos lábios de Lia

sexta-feira, abril 10, 2020

seduzir-te

vem
agora te deita
vou sugar teus mamilos
jorrar deles teu veneno
sei que dali me condenas
me vicias
e me intrigas

vou gastar toda a saliva
que das palavras recuso
nas tuas curvas acho melhor uso
penugem eriçada
teu ventre cafuzo
estepe ocre
pele parda
tal como a maioria se autodeclara
no IBGE

envolvo tuas carnes com a língua e lubrifico teus orifícios
especialmente eles
os ouvidos
roubo agora um gemido
retesas a nuca no travesseiro
agora! este é o momento
e em ti me penetro inteiro
violo o hímen teus tímpanos
pra habitar no gozo
do teu pensamento.

sábado, março 21, 2020

viagens à nárnia

abro os braços-condor
do passado do agora
com dor, abro os braços
sem ais
os termais
condor
voo mais
as penas
do mundo sinto
apenas
com dor
fecho os olhos
as películas da retina
o bico que criva o ar
rapina
minha sina
seguir abismos
com dor
condor
movo, maestro dos céus
sinto
vento pulsar tormento
é que rasgo montanhas
sedento
de lonjuras de alturas de mim
condor
sem dor
senhor
de meu fim

não mais o gozo

Não quero teu gozo de pílula alucinógena
no segundo mais-que-perfeito
de ais
finais
não!
Quero o meio
a labuta
a haste viril e dura
o suor os pelos e a pele
                               bruta
anda, finca o teu pendão
neste orifício tímido inculto.

Não! Não quero revirar os olhos:
dura segundos!
Não vale o ódio.
Muito mais a noite inteira
sua pupila acesa
meus poros desvirginados
                                   gota
                                   espessa.
Dá-me o caminho
não a vereda
grandes sertões caatingas
rompe o mato com tua foice
                                      certeira
devasta meus latifúndios
e deixa que clamem pelo greenpeace
ou satélites russos
não há hora
segura agora
            meus pulsos
e fode
           mete forte
para o tempo!
vai fundo
e se atrasa pra sempre
no meu mundo.

terça-feira, março 26, 2019

a boy, one book, the train

The eyes stuck on the letters,
silently loud,
repel him every sentiment,
as the rails
by the train
are devoured.